Falo todos os dias de organização defensiva, de transições, de pressão alta e abordagens individuais. Quase não durmo, pois a porcaria da lesão do meu carregador do piano nunca mais se resolve. Como é que vou organizar a equipa se não posso usar o 1x3x1? Sem aquele gajo, a basculação não funciona bem, as zonas flutuantes e o jogo interior não são os mesmos. O pivot está sempre mal posicionado e o ala não consegue inverter o sentido do jogo quando é preciso. Já sonho com os lenços brancos dos adeptos na bancada. Ou melhor falando, tenho pesadelos. A equipa corre para a frente e não corre para trás. Não há intensidade de jogo e estamos a cair a pique na tabela classificativa. Depois da eliminação da taça por um clube de um escalão três vezes acima do nosso, as coisas nunca mais foram as mesmas. Muitos sonhos surgiram nessa altura e muitas expectativas se criaram – diria mais muitas ilusões. Fartei-me de os avisar, mas de nada valeu.
Parando para analisar todo este pensamento que vai na minha cabeça, surgem outros pensamentos que vejo agora mais claramente a ganhar forma e a reformular a minha motivação enquanto treinador. Afinal será sempre o treinador o elo mais fraco? Será o treinador aquele que, apesar de líder, carrega a maior responsabilidade dentro da equipa? Haverá forma de exercer esta actividade sem tanta pressão? Como poderei melhorar a minha relação com os atletas? Será que existe alguma maneira de modificar este homem escondido dentro do treinador e tornar mais predominante o treinador que sai de dentro do homem? É sempre terrível quando o nosso pensamento começa a fazer perguntas: é sinal de que algo está a mudar.
Eu nunca fui uma pessoa conformada e também nunca fui um treinador muito conformado. Nunca me deixei levar pelo destino e é óbvio para mim que sou uma pessoa resiliente, que continua a lutar perante as adversidades, mesmo sabendo que poderá ser muito difícil. Nunca quis desistir. Nunca quis que as coisas fossem fáceis. Quis antes sempre torná-las mais simples. No entanto, como já ouvi alguém dizer: “…se complicar é tão fácil por que é que tenho de simplificar?” – Porque nós temos a tendência para complicar as coisas.
Entendo que este tipo de pensamento não seja tão linear e óbvio para muitos treinadores. A maior parte dos meus colegas só se preocupa com o mais superficial do trabalho – que não deixa de ser importante – e relega para segundo plano este tipo de pensamento estratégico de desenvolvimento e busca de respostas e soluções que impulsiona e motiva o treinador. Muitos dos meus colegas treinadores procuram fora as suas motivações – sejam elas financeiras, sejam elas de reconhecimento -, e esquecem que eles é que devem, primeiro, encontrar a força maior que um treinador deve ter para querer exercer as suas funções.
Ser treinador é ter uma missão gloriosa e deve ser uma constante busca por excelência. É ter persistência para manter a nossa honra e humildade para assumir as nossas falhas. É ter paciência para fazer as coisas resultarem sem sentir falta de motivação para trabalhar. É ter uma garra que vem de dentro e entusiasma os nossos atletas, e os lidera para uma superação sem igual. É ter lata para abrir a mente, aceitar partilhas dos outros colegas e partilhar com eles, sem medo, as nossas convicções. A vida de um treinador é uma vida de constante exposição. O seu carácter será constantemente exposto caso não esteja alinhado com as suas competências. O treinador deve actuar sempre como se mil pessoas o estivessem a observar, mesmo que não estejam. E as suas acções deverão ser as mesmas nas duas situações.
É engraçado que tudo o que disse aqui foi acerca de qualidade humanas, e essas não são definidas por nenhum 4×0 ou pela percentagem de posse de bola. Ser treinador não tem que ver com saber treinar os jogadores para colocar o autocarro à frente da área para defender o resultado, ou ter a posse de bola durante 50 minutos de jogo. O Pedro Catita e o Da Cruz sabem disso melhor do que a maioria dos treinadores e não são treinador (sem querer menosprezar os seus conhecimentos e as suas capacidades para ler o jogo). Sobre isso existem muitas pessoas craques em táctica e observação. Aliás, até existem muito mais treinadores do que um milhão de equipas poderia suportar: os treinadores de bancada são uma realidade.
Para um taxista, é muito mais importante a maneira como se relaciona com os clientes do que a maneira de conduzir, embora esta também tenha a sua importância. Para uma peixeira, é mais importante a relação que cria com as freguesas do que a eficácia com que corta o peixe, embora esta também seja importante. Para o carpinteiro, é mais importante a forma como explica o trabalho que vai fazer do que na realidade aquilo que vai, de facto, fazer. Para um empresário, é mais importante a maneira como consegue criar parcerias com outras empresas do que na verdade o trabalho que vai fazer com elas. Agora é preciso que aquilo que se faz esteja alinhado com aquilo que se diz. Ser coerente e competente: não vale de muito passar horas e horas a elaborar exercícios ou a planificar treinos se as raízes da nossa árvore não forem sólidas.
A vida de treinador, à primeira vista, é muito bonita. À segunda vista já não tanto. À terceira vista, só quem a vive na primeira pessoa compreende as motivações. Seja de alto rendimento ou alta competição ou de clube de bairro. Parece que o nosso lugar está sempre em risco. As nossas decisões nunca são as ideais. Parece que deveríamos ter superpoderes… Ser competente é ter o foco nos processos e os resultados positivos surgirão naturalmente. É tornar os nossos objectivos claros e as nossas acções consistentes. É preciso saber quando baixar o bloco defensivo? É preciso saber como manter os jogadores motivados? É importante entender os adversários e tomar decisões em conformidade? É necessário saber treinar as variações de flanco ou o jogo interior? É essencial saber treinar as transições ofensivas? A todas estas perguntas a resposta é a mesma: claro que sim! A solução que encontrei para os meus pesadelos, no entanto, nada tem a ver com estas competências. Eu preciso de descobrir o homem que sou, escondido no treinador que também sou. Se eu resolver os meus pesadelos, estarei livre para ser um melhor treinador, liderar melhor a minha equipa, preparar para ganhar, ter uma ideia global do jogo. Libertar-me do foco nos resultados é um passo para vencer. A vitória surgirá muito mais vezes, muito mais regularmente. Os actos de pensar, agir e comunicar deverão vir de dentro de nós. Para isso, precisamos de acreditar primeiro no que somos e no que fazemos. Depois, de descobrir como o fazemos e, por fim, o que fazer para que aquilo em que acreditamos tenha sucesso.
A função de treinador é caracterizada pela constante insatisfação positiva, pelo privilégio de liderar e servir, pela qualidade do seu relacionamento com os atletas e pela sua capacidade de comunicar; não pelo 3×1 ou 2×2 que a equipa tão bem treina e executa, ou pelos títulos que ganhou ou perdeu. Ser treinador é ser uma obra constantemente inacabada…
Sabendo isto, não mais terei pesadelos ou ansiedade por causa de um jogo ou de uma derrota…
Alcino Rodrigues
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